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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Documentário 04: Breve história do amor romântico

Mas se o privilégio do sentimento e de todas as formas de energia irradiante no plano humanoconstitui uma das matrizes do amor romântico, uma outra consiste na longa tradição do amor
apaixonado, que remonta à Antigüidade e foi transmitida à Europa pelos árabes. A terceira matriz
está nas conseqüências da condenação do sexo por São Paulo, que marcou toda a cultura cristã e
conduziu à separação entre amor espiritual e amor físico – que justamente o Romantismo quis
superar. Como veremos, no Ocidente foi este movimento que deu início ao resgate da sexualidade
como dimensão legítima (e não mais pecaminosa) do humano.

Vejamos primeiro o que a forma romântica de amar deve aos seus predecessores, pois, se ela
apresenta características peculiares, os homens e mulheres não esperaram os meados do século
XVIII para se apaixonar intensamente uns pelos outros. É o historiador Theodore Zeldin, autor de
uma interessantíssima História Íntima da Humanidade8, que nos guiará neste percurso. “A históriado amor não é um movimento em espiral no rumo da liberdade mais ampla, mas um fluxo e refluxo,
um turbilhão e longos períodos de calma”, diz ele à página 97 do livro.
 Costuma-se pensar que foram os trovadores provençais os inventores da forma de amar que depois
se chamará romântica, e mesmo o historiador e filósofo Denis de Rougemont, em seus clássicos O
Amor no Ocidente (1940) e Os Mitos do Amor (1968), situa o nascimento dela na história de Tristão
e Isolda, célula-mãe da qual se originaria todo o “erotismo ocidental”. Contudo, Zeldin mostra que
o autor dessa saga do século XII, assim como o do Roman de la Rose (Jean de Meung, no século
seguinte), bebeu em fontes árabes, por sua vez influenciadas pelos poetas e músicos da Pérsia.
De fato, a concepção do amor como “anseio pelo inatingível” é elaborada por Al- Abbas ibn Al-
Ahnef, poeta que viveu na corte do califa Harun al-Rachid (Bagdá, século IX). Ele se apóia em duas
tradições independentes, a dos beduínos do deserto e a das mulheres de Meca e Medina na época do
surgimento do Islã. Da primeira provém a idéia de que o amor possibilita a emancipação das
lealdades grupais, particularmente quando é provocado por um estrangeiro por quem uma jovem
local se apaixona. Da segunda, a importância da música, em especial da música não-árabe – persa,
mas também do Egito, da Grécia e de outros lugares conquistados pelas hostes de Alá – como
veículo de idéias e sensações estranhas à cultura tribal, favorecendo a expressão de sentimentos
pessoais e de comportamentos independentes por parte das mulheres: o que suscita o espanto dos
contemporâneos, e mesmo do leitor informado sobre a condição subalterna a que elas foram
relegadas pela evolução posterior da civilização muçulmana.
Al-Abbas combina estas tradições, que falam do amor como algo ligado ao estrangeiro – isto é,
àquilo que desestabiliza o instituído e atrai o indivíduo para caminhos nunca dantes palmilhados –,
com uma idealização da mulher sem precedentes na literatura greco-romana, hindu ou chinesa. Diz
Zeldin que ele “cantou o amor infeliz, casto, paradoxal”, separando o sexo do aspecto mais
espiritual (no que provavelmente é devedor do cristianismo paulino e agostiniano, e da campanha
dos Padres da Igreja contra a concupiscentia, vista como tentação do Demônio e caminho para a
perdição). “Quem ama com amor não correspondido, e permanece casto, morre como mártir”, reza
um verso de Al-Abbas citado por Zeldin à página 102 do seu livro.
A esta idealização de uma mulher inacessível, antecessora da belle dame sans merci dos trovadores,
opõem-se já no mundo árabe duas tendências diferentes. Uma é a do “amor pacato”, preferido por
aqueles que não querem se entregar aos excessos da paixão e buscam “relacionamentos fáceis e
superficiais”, sem o páthos e a teatralidade próprios aos ensandecidos por Eros. A outra tem seu
representante principal no cordovês Ibn Hazm (994-1064), que em O Chamado do Desejo analisa
suas próprias experiências amorosas.

Para este filósofo, o amor transforma as pessoas, as engrandece e enobrece, as torna boas e
generosas. Ele é ou deve ser a experiência central da vida, e, por nos revelar a nós mesmos como
somos, com nossos defeitos e qualidades, em nosso esplendor e em nossa miséria, constitui a via
régia para o autoconhecimento. E não se fala aqui apenas do amor espiritual: o ato sexual, afirma
Ibn Hazm, “completa o circuito e facilita a fluência livre da corrente do amor em direção à alma”9.
Seu seguidor Ibn Arabi (1165-1245) dirá, numa obra sugestivamente intitulada A Interpretação dos
Desejos Ardentes, que “minha é a religião do amor, ela será minha fé (...); meu coração estará
aberto a todos os ventos, é uma pastagem para as gazelas.”
Vê-se que todos os componentes do amor cortês já estão presentes na literatura árabe, como aliás se
pode comprovar abrindo qualquer página das Mil e Uma Noites. A proximidade geográfica entre a
Espanha muçulmana e o sul da França facilitou a transmissão destas idéias para além dos Pirineus:

Zeldin sugere que a palavra troubadour proviria do árabe tarab, que significa música. De fato, a
concepção ocidental do amor, plasmada pelos trovadores provençais, deve muito à tradição
islâmica. Mas ela também finca raízes em correntes de pensamento que, embora condenadas pela
ortodoxia religiosa, sempre encontraram adeptos - desde os gnósticos e maniqueus da época dos
Padres da Igreja até as heresias que sacudiram a Cristandade no período central da Idade Média, em
particular a dos cátaros e a dos albigenses: Albi, foco a partir do qual se irradiou esta última, se
localiza precisamente no sul da França.
Todos estes pensamentos e práticas, em parte religiosos e em parte laicos, debatem-se com a
separação radical entre sexualidade e espiritualidade imposta pela doutrina e pela moral católicas,
na qual os especialistas vêem a terceira matriz da concepção romântica do amor. Por outro lado,
esta mesma separação inspira a sublimação do sexo nas canções e na poesia – pois se o menestrel
pudesse casar-se com a dama dos seus sonhos, por que iria compor odes que falam de distância
insuperável entre ambos?
Diz Denis de Rougemont que nos séculos XII e XIII ocorreu um fenômeno cuja intensidade e
novidade podem ser comparadas às da liberação sexual no nosso tempo: a invenção do amor
sublimado. Os trovadores representam a face laica deste fenômeno; São Bernardo de Clairvaux, o
reformador da ordem beneditina, a sua face mística; Abelardo e Heloísa protagonizam a primeira
história de paixão infeliz a incendiar as imaginações, evocada no episódio de Paolo e Francesca
(Divina Commedia); Dante e Petrarca inventarão a figura da musa juvenil; “o culto da Dama e o
culto da Virgem se propagam rapidamente pela Europa, nesta invenção simultânea do lirismo, da
erótica e da mística”10.
No que estes elementos nos ajudam a compreender o amor romântico do século XIX, a mais de
setecentos anos de distância, e por meio deste a sua face contemporânea? Em primeiro lugar, os
temas literários têm vida longa: uma vez inventados, permanecem no imaginário coletivo, e, embora
cada época os recubra com roupagens diversas, uma mesma estrutura subsiste como base para todas
as variações. Por exemplo, o tema da união impossível – que segundo Rougemont remonta a
Tristão e Isolda, foco inicial do lirismo e do erotismo ocidentais: do teatro ao romance, dos filmes
às novelas da televisão, essa célula temática permanece viva e fecunda, apenas adaptada ao gosto e
às crenças de cada época. Assim, o filtro amoroso da saga original coaduna-se com as idéias
medievais sobre feitiços e bruxas; em Romeu e Julieta, é o ódio entre duas famílias poderosas que
impede o enlace dos amantes; em O Guarani, Ivanhoé, Orgulho e Preconceito, A Força do Destino
e tantas outras obras do século XIX, o obstáculo é representado pela diferença social
(escravo/senhora, cristão/judia, plebeu/patrícia, mestiço/espanhola, etc., etc.).
Em segundo lugar, a impossibilidade de consumar a união não é completa, pois se o fosse não
haveria história: ou os personagens renunciariam à luta contra o que os impede de se juntar e iriam
procurar outro parceiro, ou sucumbiriam juntos logo à primeira investida dos que se opõem à sua
paixão. É porque existe esperança que o amor é possível – esperança de vencer os obstáculos, ou,
se no final se revelarem insuperáveis, de se encontrar na morte: é o que ocorre em inúmeras óperas
e romances oitocentistas – basta citar a Norma de Bellini, ou o Antony de Alexandre Dumas11. É
esta oscilação entre a esperança e o desespero – entremeada pelos encontros furtivos entre os
amantes - que produz a alternância de estados eufóricos e depressivos da qual fala Benedito Nunes
no trecho citado atrás.

Em terceiro lugar, e passando da literatura para a vida, os exemplos literários são justamente
exemplares, isto é, suscitam em quem com eles entra em contato o desejo de os imitar – e isso é
particularmente evidente no que se refere ao amor. Como na ficção os elementos são mais
acentuados e nítidos do que na vida real, eles fornecem símbolos e meios de expressão para os
estados emocionais próprios ao enamoramento, por natureza perturbadores e, portanto necessitando
ser processados. Daí a ânsia por modelos que dêem sentido ao tumulto dos afetos, e a
permeabilidade a eles por parte dos leitores e espectadores: atitudes, comportamentos,
autopercepções passam a ser moldados segundo esses parâmetros, que dão nome e rumo ao que se
apresenta como um cataclisma capaz de desestabilizar as balizas do Eu.
E principalmente se o enamoramento ocorre no período particularmente turbulento da adolescência.
Entre mil outros exemplos, ouçamos o Cherubino de As Bodas de Fígaro:
Non so piú cosa son, cosa faccio
Or di foco, ora sono di ghiaccio
Ogni donna cangiar di colore
Ogni donna mi fa palpitar (...)
Un desio ch’io non posso spiegar.
......................................................
Voi che sapete cosa è amor,
Donne, vedete se io l’ho nel cor (...)
Non trovo pace notte né dí
Ma pur mi piace languir così. 12
Quem de nós, assim como nossos pais ou nossos filhos, não poderia dizer palavras como essas?
Voltando aos modelos: a mesma função outrora delegada ao teatro e à ópera é hoje exercida pelo
cinema e pelas novelas, e, para o público infantil, pelos desenhos animados, muitos deles tirados de
histórias do século XIX. O mesmo vale para as revistas de “celebridades”, que se concentram na
vida amorosa das estrelas da cultura popular: é de se perguntar o que os milhões de leitores destas
publicações buscam nelas – a prova de que os famosos também sofrem, ou a confirmação de que,
embora somente para pouquíssimos eleitos, o amor feliz é possível? Provavelmente ambas as coisas
– e o paradoxo de as querer ao mesmo tempo mostra que a ambivalência própria à “sensibilidade
romântica” se encontra tão disseminada hoje quanto na era vitoriana13.

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